No ano de 2024, o estado de Mato Grosso ocupou o ranking de terceiro estado que mais matou pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ e vem se destacando como um dos estados mais homofóbicos da história. De acordo com os dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública de Mato Grosso e do Grupo Estadual de Combate aos Crimes de Homofobia - GECCH/SESP, foram registrados cerca de 357 casos e mortes por homofobia. Entre os casos que mais tiveram denúncias, a injúria ficou em primeiro lugar com 95 casos; ameaça com 40 e lesão corporal com 38. No ano anterior, o Jornal Centro Oeste Popular noticiou, ao longo de 2024, vários casos de violência letal envolvendo pessoas LGBT+. Um desses casos foi o de Indianara, uma mulher transexual de 32 anos, que faleceu ao ser atropelada por um caminhoneiro em agosto, em Rondonópolis. Relatos de familiares indicam que o suspeito teria contratado um serviço sexual com ela.
Em outubro, ocorreu o assassinato brutal da cantora e suplente de vereadora, Santrosa, de 27 anos, também uma mulher transexual, que foi torturada, morta e decapitada em Sinop por integrantes de uma facção criminosa. Ainda nesse mês, Isabela, uma jovem transexual de 26 anos, foi assassinada a tiros em um bar no município de Peixoto de Azevedo. Outro incidente devastador aconteceu em dezembro, envolvendo a cabeleireira transexual Bia Castyel, de apenas 20 anos, que foi estrangulada e esfaqueada 22 vezes por um cliente, um adolescente de 17 anos.
Este material é fruto de um esforço coletivo na produção e sistematização de dados sobre a violência e a violação de direitos LGBTQI+. Muitas vezes, há uma grande dificuldade em identificar e classificar claramente os crimes como homofóbicos, o que dificulta a conclusão sobre a motivação desses atos de violência.
Uma das vítimas recorrentes é a cantora e artista trans, Josiane Campos Honorata, 20 anos, mais conhecida como Josy Campos. Campos relata que, durante a sua autoaceitação, sofreu diversos preconceitos, principalmente o machismo, e relata que percebeu que tudo culpam o feminino, tornando-se um problema ser mulher e ter todos os traços femininos dentro da sociedade. Em sua trajetória, sofreu agressões verbais, psicológicas, rejeições e diversas faltas de oportunidades na sociedade. Além disso, presenciou diversos casos e agressões, um dos quais marcou sua vida, foi quando sua prima foi agredida publicamente por homofobia.
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“Ela foi agredida com questões de transfobia mesmo, do machismo estrutural, dizendo que ela não é mulher. Tentei impedir de alguma maneira, mas acabei não conseguindo, porque de alguma forma, eles me agrediram verbalmente. Vejo que tudo é violência, independente de ser física, psicológica ou verbal”, relata.
Josy confessa que a forma de lidar é muito complexa e não possui meios para recorrer, pedir ajuda e ter uma segurança adequada. Ao recorrer a qualquer tipo de delegacia, corre o risco de não ser atendida e sofrer mais preconceitos, e dentro de casa, familiares dizem que a culpa foi da vítima ou a tornam uma vilã da história, e acabam ficando sem saída.
“O estado deveria dar uma atenção maior para as pessoas da comunidade, que são minoria e muitas vezes não possuem oportunidades de socializar e se tornam vítimas da violência, prostituição, drogas e ruas”, finaliza.
Josy Campos se sente privilegiada e orgulhosa de ser uma das poucas trans a não sofrer nenhuma agressão que a levasse à morte e, com bastante luta e esforço, consegue oportunidades no mundo do audiovisual dentro do estado de Mato Grosso.
Já em 2023, o Brasil registrou a morte de uma pessoa da comunidade a cada 38 horas, segundo os dados do Observatório. Em 2020, foram 237 mortes; em 2021, 316; em 2022, 273; e em 2023, 230 mortes associadas à homofobia. Apesar desse número já representar uma grande perda, ainda existem indícios de subnotificação desses casos no Brasil. Isso ocorre devido à falta de dados oficiais e à dependência das informações disponíveis na mídia, o que limita a precisão da pesquisa. A ausência de informações consistentes sobre a identidade de gênero e orientação sexual das vítimas nos registros de veículos de comunicação também contribui para que muitos casos de violência contra pessoas LGBTI+ sejam omitidos. A pesquisa apontou diferentes formas de violência, incluindo esfaqueamento, apedrejamento, asfixia, esquartejamento, negativa de serviços e tentativas de homicídio. A maioria dessas mortes (80%) foram homicídios cometidos por terceiros, somando 184 casos, seguidos por 18 suicídios (7,83%) e outras 28 mortes (12,17%).
O estudo também revelou alguns dados significativos, como 142 mulheres trans e travestis mortas, 59 gays, 80 vítimas pretas e pardas, 70 brancas e 1 indígena. As faixas etárias mais afetadas foram as de 20 a 39 anos, com 120 vítimas.
A maioria das mortes (70) foi causada por arma de fogo e ocorreu durante o período noturno (69 casos). O estudo também registrou 11 suicídios entre pessoas trans e 79 mortes tanto no Nordeste quanto no Sudeste. Essas mortes ocorreram em ambientes diversos, como o doméstico, via pública, cárcere e o local de trabalho. É importante destacar o número elevado de suicídios (30 casos), que evidenciam os danos da LGBTIfobia estrutural na saúde mental das pessoas. A homofobia é um fator social de risco significativo para a saúde mental da comunidade LGBTI+, especialmente devido à violência recorrente contra esses indivíduos.
Os jovens LGBTI+ não são propensos ao suicídio apenas por sua identidade ou orientação, mas pelo estigma e violência que enfrentam na sociedade, causando sofrimento psicológico proveniente de diferentes formas de LGBTIfobia. Esse cenário de violência persiste, apesar dos avanços sociais em relação ao poder judiciário.
No entanto, o Legislativo e o Executivo permanecem inativos na luta contra a LGBTIfobia, que continua enraizada tanto no estado quanto na sociedade. Além das mortes, as pessoas LGBTI+ enfrentam diversos desafios, como uma taxa de empregabilidade inferior à dos cis-heterossexuais e uma maior probabilidade de estigmatização, humilhação e discriminação nos serviços de saúde.
Esses fatores os tornam mais vulneráveis a violências e à negação de seus direitos fundamentais, como o direito à vida. Quando analisado o número de mortes por milhão de habitantes, os estados mais afetados são Mato Grosso do Sul (3,26 mortes por milhão), Ceará (2,73 mortes por milhão), Alagoas (2,56 mortes por milhão), Rondônia (2,53 mortes por milhão) e Amazonas (2,28 mortes por milhão).
A construção do Dossiê de Mortes e Violências contra a População LGBTI+ enfrenta um dos maiores desafios: a ausência de dados governamentais. Atualmente, fontes oficiais, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério da Saúde, não produzem informações sobre a população LGBTI+, o que dificulta a mensuração precisa da violência e da morte desse grupo. Diante dessa lacuna, a sociedade civil recorreu a uma alternativa para mapear a LGBTIfobia letal: a coleta de dados provenientes de veículos de comunicação de grande circulação, como jornais locais e redes sociais, incluindo Facebook e Instagram. Além disso, relatos testemunhais enviados para canais de comunicação das organizações.
No entanto, a dependência do reconhecimento da identidade de gênero e da orientação sexual das vítimas pelos meios de comunicação pode resultar em omissões ou distorções nos dados reportados. Isso implica que o número de mortes violentas de pessoas LGBTI+ no Brasil provavelmente está subnotificado. Outro ponto importante é que, em muitos dos casos estudados, a falta de informações desenvolvidas dificulta uma investigação mais profunda, limitando a análise precisa dessas ocorrências. Para preencher essas lacunas, o Observatório implementou um processo de busca ativa de informações adicionais, com o envio de ofícios às Secretarias de Segurança Pública, com base na Lei de Acesso à Informação (Lei n.º 12.527/2011), a fim de ampliar o número de dados disponíveis.
O contexto histórico dos casos de transfobia e homofobia no Brasil
A população LGBTI+ no Brasil tem sido alvo de diversas formas de mortes violentas desde a colonização, mesmo antes de existirem as denominações modernas para as questões de sexualidade e identidade de gênero. A LGBTIfobia estrutural coloca essas pessoas em situação de vulnerabilidade, pois não se enquadram no modelo socialmente estabelecido pela heteronormatividade, binaridade e cis. O Brasil se configura como um país altamente inseguro para essa população, com um aumento preocupante nas últimas duas décadas no número de mortes violentas relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual.
Esse aumento, no entanto, também está ligado à mobilização crescente do movimento, que, ao dar visibilidade a essa questão, tem buscado mensurar e combater a violência, algo que antes não era feito de forma sistemática, apesar da violência se entrelaçar com questões sociais e políticas. Entre 2000 e 2023, 5.865 pessoas foram assassinadas devido ao preconceito e à intolerância de segmentos da população, além da omissão das autoridades responsáveis pela implementação de políticas públicas para enfrentar esses casos.
Em particular, o Dossiê ANTRA de 2023 denuncia o contexto de violência enfrentado pela comunidade trans no Brasil. Travestis, mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias são vítimas de um processo de exclusão social alimentado pela discriminação e pelo preconceito. Alémdas mortes, essas pessoas sofrem violências psicológicas intensas, que comprometem sua saúde mental e podem resultar em suicídios.
O Estado brasileiro, longe de ser apenas omisso, também tem sido responsável direto por diversas violências contra pessoas trans. Nos últimos anos, tem crescido o fortalecimento de uma aliança perigosa entre grupos historicamente LGBTfóbicos, políticos de extrema-direita, milícias paramilitares, grupos neonazistas e líderes religiosos fundamentalistas. Essa aliança ganhou força especialmente após a eleição do atual governo, com o apoio de diversos grupos que integram as redes bolsonaristasAlém disso, surgiram movimentos de Lésbicas, Gays e Bissexuais, cisgênerosanti-trans e o feminismo radical trans-excludente, que se mobilizam para construir, fortalecer e divulgar narrativas anti-trans, alimentando o ódio, o medo e a desumanização. O Brasil é, atualmente, o país com o maior número de mortes LGBTI+ no mundo, conforme apontam os dados compilados pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil.
Quando comparado a outros países, o Brasil lidera em termos de crimes e assassinatos contra pessoas da comunidade LGBTI+, refletindo a gravidade da violência e da discriminação enfrentadas por essa população. No entanto, em relação à criminalização das relações afetivas entre pessoas LGBTI+, o Brasil não é o único país a adotar legislações severas.
Existem 13 países que impõem a pena de morte para quem mantém relações homoafetivas. Esses países são: Sudão, Irã, Arábia Saudita, Iémen, Mauritânia, Afeganistão, Paquistão, Catar, Emirados Árabes Unidos, Iraque, partes da Síria, partes da Nigéria e partes da Somália.
Esse quadro revela a tragédia da LGBTfobia global, que se manifesta de diversas formas, desde a violência letal até a criminalização das identidades e relações afetivas. A
LGBTfobia é considerada crime no Brasil, com penas previstas por lei, e deve ser combatida com seriedade.
Esse tipo de discriminação, que envolve violência, preconceito ou incitação ao ódio contra pessoas LGBTI+, pode ser enquadrado na Lei de Racismo, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019. Em caso de testemunho de um episódio de LGBTfobia, é fundamental fazer uma denúncia. Existem diversas maneiras de agir. Se o crime estiver acontecendo em flagrante, a recomendação é ligar imediatamente para o número 190 ou 100.