A realidade da infância e juventude em Mato Grosso acende um alerta vermelho. Dados apresentados pela Rede Protege, articulação intersetorial que reúne instituições e serviços voltados à garantia de direitos de crianças e adolescentes em Cuiabá, revelam um cenário preocupante de violências físicas, sexuais e autoprovocadas registradas em 2024. O levantamento, produzido pela Vigilância Epidemiológica do Município, indica que muitos casos ainda permanecem invisíveis, substantificados ou reincidentes.
No ano passado, a capital mato-grossense registrou 344 notificações de violência contra crianças e adolescentes. Do total, 227 foram de violência interpessoal, 83 de violência autoprovocada, e 34 estavam com campos ignorados ou em branco. A maioria das vítimas tem entre 13 e 18 anos (58,7%), enquanto 28,5% têm entre 0 e 12 anos. Jovens de 19 anos representaram 4,9% dos casos. O perfil das vítimas mostra que 61% são pardas, seguidas por brancas (23%), pretas (9%), indígenas (5%), amarelas (1%) e registros ignorados (1%). Quanto à escolaridade, a maior incidência foi registrada entre alunos da 5ª à 8ª série (34,3%) e estudantes com ensino médio incompleto (13,1%).
A violência sexual aparece como o tipo mais frequente, correspondendo a 43,3% dos casos, seguida de agressões físicas (19,4%), tentativas de autoextermínio (15,5%), violência psicológica (14,1%) e negligência (3,6%). Também foram identificados casos de tortura (1,8%) e trabalho infantil (0,2%). Entre os 190 casos de violência sexual registrados em Cuiabá no último ano, 88 aconteceram mais de uma vez. As vítimas são majoritariamente meninas (176), com os meninos representando apenas 14 notificações. Os crimes ocorreram, em sua maioria, nas próprias residências (73,7%), além de vias públicas (16,8%), comércios, escolas, habitações coletivas e outros espaços. Os agressores identificados incluem, sobretudo, pessoas próximas: conhecidos (58), namorados (48), padrastos (19), pais (16), ex-namorados (15), além de irmãos, cônjuges, figuras institucionais, mães e desconhecidos.
Um episódio recente em Cuiabá escancarou a gravidade das violações enfrentadas por crianças. A Polícia Civil investiga uma mulher de 35 anos suspeita de entregar a própria filha de 10 anos ao chamado “tribunal do crime”, após descobrir que a menina esteve em um motel com um homem de 63 anos. O caso veio à tona após denúncia recebida pelo Conselho Tutelar, sendo acionado quando duas meninas, de 10 e 13 anos, foram encontradas no local com o idoso. De acordo com a investigação, a mãe, alegando não conseguir educar a filha, teria solicitado a membros de uma organização criminosa que aplicassem um “castigo” na criança. A vítima foi localizada com lesões nos braços, no polegar esquerdo e na perna direita, e está sob os cuidados do Conselho Tutelar. A Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (DEDDICA) apura o caso. A mãe é investigada por maus-tratos, enquanto o idoso responderá por estupro de vulnerável.
Em resposta a esse panorama, as instituições públicas reforçam as ações integradas durante o Maio Laranja, campanha nacional de enfrentamento ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Em Cuiabá, membros do Ministério Público de Mato Grosso (MPMT) realizam, ao longo do mês, palestras e rodas de conversa com estudantes da rede pública para conscientização e prevenção. A Rede Protege é composta por uma ampla gama de órgãos do sistema de justiça, saúde, educação e assistência social, como o MPMT, Defensoria Pública, Assembleia Legislativa, Prefeitura de Cuiabá, Governo do Estado, Conselhos de Direitos, Hospital Universitário Júlio Müller e entidades da sociedade civil.
Paralelamente, a Polícia Civil de Mato Grosso deflagrou, no mês de maio, a Operação Infância Segura, com o objetivo de combater o armazenamento e o compartilhamento de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes. A ação é conduzida pela Delegacia Especializada de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI) em parceria com a Coordenadoria de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e Vulneráveis. Foram cumpridos 11 mandados de busca e apreensão nos municípios de Cuiabá, Poconé, Lucas do Rio Verde, Barra do Garças e Primavera do Leste. Os alvos foram identificados após investigações realizadas com apoio do Cyberlab da Diretoria de Inteligência da própria Polícia Civil, que rastreou redes de compartilhamento de arquivos contendo abuso sexual infantil. Durante as investigações, foi possível vincular os dados coletados a usuários localizados em Mato Grosso. Em pelo menos um dos casos, o investigado já havia sido preso anteriormente por crimes semelhantes, incluindo produção e armazenamento de pornografia infantil.
A operação teve como objetivo apreender mídias eletrônicas, HDs, celulares e notebooks, além de coletar novas provas que permitam identificar se há uma rede criminosa instalada no estado. Os mandados também autorizaram o acesso aos dispositivos e dados armazenados em nuvem dos suspeitos. Segundo o delegado responsável, Guilherme Fachinelli, os alvos utilizavam ferramentas específicas para baixar e manter armazenados arquivos contendo abuso sexual de crianças e adolescentes. As investigações agora seguem para verificar possíveis vínculos entre os investigados e a existência de uma rede organizada de exploração infantil digital.
Os dados da segurança pública em Mato Grosso reforçam a gravidade da situação. Em 2024, entre janeiro e dezembro, o estado registrou 1.997 casos de estupro de vulnerável e 397 de importunação sexual. Já em 2025, apenas entre janeiro e abril, o número de estupros de vulnerável já chegou a 442, enquanto os registros de importunação somam 105 casos. Esses números somam-se às ações emergenciais conduzidas pela Rede Protege e pela Polícia Civil e refletem a necessidade de políticas públicas robustas, articulação permanente entre instituições e atuação firme do Estado na prevenção, repressão e responsabilização dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes em Mato Grosso.