31 de Julho de 2025

CIDADES Segunda-feira, 28 de Julho de 2025, 16:39 - A | A

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NOVAS OPORTUNIDADES

Cultura e acolhimento: Projeto LGBTQIAPN+ muda vidas na periferia de Cuiabá

Entre afeto, disciplina e criatividade, jovens encontram moradia, formação profissional e pertencimento em iniciativa que une cultura e cuidado coletivo.

Ana Carolina Guerra
Resumo

Em um canto pulsante da periferia de Cuiabá, precisamente no bairro Osmar Cabral, nasceu um projeto que transformou realidades, resgatou dignidades e impulsionou vidas para o futuro. Idealizado e fundado em 2015 por Hiago e Elton Martins, o Ponto de Cultura e a Casa de Acolhimento — criados e mantidos por um coletivo LGBTQIAPN+ sob a liderança de artistas e produtores culturais independentes — completam um ano de atuação com uma marca potente: gerar renda, oferecer formação profissional e criar possibilidades de inserção no mercado de trabalho para pessoas em situação de vulnerabilidade social, especialmente jovens da comunidade.

De acordo com Elton, a oportunidade surgiu após seu pai ceder o espaço para a concretização do sonho do filho. Desde então, os fundadores começaram a correr atrás para oficializar a ideia.
“Na verdade, o acolhimento de pessoas já acontecia antes mesmo da criação oficial da Casa de Acolhimento do Ponto de Cultura, e tudo começou na minha casa. Era um acolhimento informal, podemos dizer assim, feito entre amigos. Integrantes do MT Queer iam para lá, passavam um ou dois dias — muitas vezes porque não se sentiam bem em casa ou estavam enfrentando dificuldades — e ficavam até se sentirem melhor para então retomarem suas rotinas. Houve também casos em que algumas pessoas permaneceram com a gente por períodos mais longos, seis, sete meses, porque realmente não tinham para onde ir. Foi a partir dessas vivências que começamos a enxergar a real necessidade de criar um espaço estruturado para esse tipo de acolhimento. Quando o projeto do Ponto de Cultura foi aprovado em um edital nacional do Carrefour Brasil, vimos a oportunidade de unir as duas frentes: cultura e acolhimento. Dependendo do tamanho do prédio que conseguiríamos, poderíamos concentrar em um mesmo espaço tanto as atividades culturais quanto a criação oficial da Casa de Acolhimento”, afirma Elton.

A proposta nasceu de uma lacuna histórica: o abandono de corpos dissidentes, a marginalização de identidades e a ausência de políticas públicas efetivas voltadas para jovens trans, travestis, negros e periféricos. Diante desse cenário, o coletivo MT Queer idealizou um espaço de acolhimento, cuidado e arte. Com recursos obtidos via edital privado do Grupo Carrefour, a parte do Ponto de Cultura foi construída oficialmente. Já a Casa de Acolhimento, que abriga gratuitamente jovens em situação de risco, foi totalmente viabilizada com recursos próprios dos coordenadores do projeto.

Esse espaço abriga histórias como a de Josy Campos, multiartista de 20 anos, nordestina e hoje estudante da MT Escola de Teatro, com ênfase em Sonoplastia. Josy chegou ao projeto em abril de 2024, antes mesmo da estrutura oficial do ponto de cultura existir.

“Estava em um momento de vulnerabilidade social, sem estrutura emocional e com conflitos familiares. Só me dava bem com a minha mãe; com o restante da família, o vínculo era quase inexistente. Quando os meninos me convidaram para integrar a Casa de Acolhimento, nem existia o espaço físico ainda. Era tudo muito no campo do sonho, da construção coletiva. Vivíamos aqui em uma kitnet. Depois, quando saiu o edital do Carrefour, veio o aporte para montar o Ponto de Cultura. Mas a Casa de Acolhimento não estava prevista no projeto. Então, os meninos tiraram do bolso para manter essa casa e nos dar um teto, comida e dignidade”, relembra.

Com o apoio do ponto, a artista não apenas encontrou moradia, mas também ocupou espaços de formação e profissionalização. “Comecei a trabalhar com sonoplastia, fui incentivada a prestar o processo seletivo da MT Escola de Teatro e passei em primeiro lugar. Hoje estudo e, graças à formação que recebi aqui no ponto, fui contratada para fazer a sonoplastia de diversos eventos, como o festival da própria escola. Além disso, outros festivais me chamam, shows, apresentações. A arte me deu dignidade, mas foi o ponto que me deu acesso a ela.”

Além de estudar e atuar como artista, Josy também presta serviços internos ao Ponto de Cultura, exercendo a função de secretária na sala "Amigo Internet" — um espaço equipado para cursos, oficinas e atendimento ao público. Nesse ambiente, os acolhidos não apenas têm acesso à formação, mas também à possibilidade de atuação profissional, por meio de bolsas e atividades remuneradas. A estrutura do projeto, segundo ela, vai além da capacitação: oferece oportunidades concretas de geração de renda e promove um cuidado integral com cada indivíduo.

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Outro acolhido fundamental nessa história é Glauber Costa, 26 anos, natural de Cáceres. Glauber está acolhido desde 28 de julho de 2024 e, em apenas seis meses de convivência, tornou-se o governante da Casa de Acolhimento — cargo que coordena internamente a rotina da casa, cuida da disciplina, organiza os horários e é o elo direto entre os acolhidos e os coordenadores. A função surgiu da própria necessidade do coletivo: como os coordenadores acumulam muitas demandas, percebeu-se que alguém de dentro da casa, que convivesse com os moradores, compreendesse seus ritmos e soubesse lidar com eventuais conflitos, seria a pessoa mais indicada para assumir essa responsabilidade. Diante disso, Glauber foi escolhido para o papel.
Antes de descobrir sua vocação, passou por várias funções dentro do coletivo. Foi assistente de direção, atuou como estilista e hoje se destaca como iluminador no mundo do audiovisual.

“Quando cheguei aqui, não tinha rumo. Fui tentando várias coisas, me achei na iluminação. Hoje faço faculdade na MT Escola de Teatro, com ênfase em iluminação cênica. Todos os projetos do MT Queer que precisam de iluminação passam por mim. E isso não é só um aprendizado — é trabalho, contrato e renda”, afirma.

Além de participar dos projetos internos do Ponto de Cultura e da Casa de Acolhimento, Glauber também atua profissionalmente fora do espaço, prestando serviços como videomaker. Aos fins de semana, realiza trabalhos com o artista Zezinho Mello, grava eventos e aceita diversos freelas. Ele destaca que uma das grandes forças do projeto é justamente a prioridade dada aos acolhidos nos contratos de trabalho. Segundo Glauber, os idealizadores do projeto preferem investir na formação técnica de quem já faz parte da casa e utilizar os próprios equipamentos do coletivo, em vez de terceirizar os serviços. Essa política representa segurança para os gestores e dignidade para os acolhidos, que têm a chance real de se inserir no mercado por meio de uma estrutura que confia e acredita em seu potencial.


 

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Entre as histórias de transformação está a de Kennedy Thompson, 31 anos, que há cinco anos ocupa o espaço. Kennedy chegou ao local em um momento de reconstrução pessoal, logo após o término de um casamento. Sem se reconhecer mais no ambiente familiar, encontrou no coletivo MT Queer um novo ponto de partida.

“Cheguei aqui logo após uma separação e voltei para a casa da minha mãe, mas percebi que aquele não era mais meu lugar. Conversei com o Elton, que me falou de umas kitnets, e vim morar aqui. Aos poucos, outras pessoas também foram chegando, como o Ender e a Josy, e começamos a imaginar juntos o que esse espaço poderia ser. Falávamos brincando: ‘Quem sabe isso aqui vira um ponto de cultura ou uma casa de acolhimento?’ E virou. Hoje vejo o quanto cresci aqui dentro: pude terminar meus estudos, entrar na faculdade e hoje trabalho na minha área. É uma história de transformação real”, conta.

Atualmente no último semestre do curso de Cenografia e Figurino na MT Escola de Teatro, Kennedy já assinou figurinos para produções audiovisuais locais e para grandes eventos, como o desfile da primeira rainha LGBT oficialmente reconhecida pela Prefeitura de Cuiabá. Dentro do MT Queer, coordena o ateliê de figurino e é responsável por toda a parte artística e visual dos espetáculos, apresentações e eventos realizados pelo coletivo.

Reprodução

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O impacto do projeto vai muito além da profissionalização e da geração de renda. Para os moradores do bairro Osmar Cabral, o local representa também uma mudança significativa de mentalidade. Quando o espaço começou a funcionar, havia muito julgamento e preconceito por parte da comunidade. Com o tempo, esse cenário começou a se transformar. Hoje, mães trazem suas filhas para participar das atividades oferecidas no local, incluindo aulas ministradas por um professor homem trans. Os acolhidos destacam que passaram a ser tratados com respeito e carinho por mães e avós da região. A presença ativa do coletivo no território contribuiu para mudar a percepção sobre pessoas LGBTQIAPN+ e negras, que antes eram vistas com desconfiança e hoje se tornaram referência de cuidado, profissionalismo e transformação. Essa mudança de olhar é resultado direto da convivência, do trabalho sério realizado no local e do vínculo construído com a comunidade, que passou a enxergar ali um espaço seguro, educativo e inspirador.

Glauber reforça essa ideia: “Aqui não é só um espaço de trabalho. É uma família. As regras existem, claro. Acordamos às 7h, limpamos a casa e o ponto, almoçamos às 11h, abrimos o atendimento ao público às 13h e seguimos até 17h. À noite, cada um tem suas atividades. Quem estuda, vai pra aula. Quem trabalha, vai pra evento. Temos horário de entrada, de descanso. Mas tudo isso se constrói no diálogo. Fazemos reuniões, temos acesso a acompanhamento psicológico. Aqui cuidamos do todo.”

Ao completar um ano de funcionamento, o Ponto de Cultura não apenas comemora sua existência, mas projeta expansão. Os coordenadores já estudam a criação de novos núcleos formativos, o aumento de vagas na casa, parcerias com outras instituições e a formalização de uma rede solidária que permita sustentar o projeto a longo prazo.

A força que move tudo isso, no entanto, segue sendo a comunidade. Jovens como Josy, Kennedy e Glauber, que carregam no corpo e na voz as cicatrizes e os sonhos de uma geração inteira que foi marginalizada por ser quem é — mas que encontrou, naquele quintal transformado em ponto de arte e resistência, um novo começo.

“Nunca pensei que um dia eu fosse estudar teatro, viver da minha arte, ter um quarto pra chamar de meu e pessoas que me amam e me respeitam. Mas aqui, tudo isso aconteceu. E ainda está acontecendo”, diz Josy.

No coração do Osmar Cabral, uma revolução silenciosa segue em curso. Ela não vem das grandes estruturas de poder, mas das pequenas decisões de afeto, do acolhimento cotidiano e da arte como ferramenta de cura e emancipação. Um ano depois, o Ponto de Cultura provou que é possível transformar vidas — com coragem, com arte e com comunidade.

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